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O preconceito, discriminação e a indiferença revelam os desafios da inclusão

Por Ana Floripes - Professora de Apoio Educacional Especializado (PAEE)



André Vasques (Autista) - https://www.facebook.com/papocomautista




A presença de estudantes com o diagnóstico e indicativos de Transtorno do Espectro Autista (TEA), no espaço escolar regular, não é recente (sempre estiveram presentes, só que não eram identificados e atendidos em suas necessidades) e têm aumentado significativamente, após a criação da Lei Berenice Piana (12.764/12)[1] que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA. Ela determina o direito ao diagnóstico precoce, tratamento, terapias e medicamentos pelo Sistema único de Saúde; o acesso à educação e à proteção social: ao trabalho, etc. Segundo o último censo escolar, em 2021[2], 294.394 estudantes com autismo estavam matriculados nas etapas da educação básica das redes públicas e privadas: infantil, fundamental e ensino médio. No ano de 2017 havia 77.102 matrículas. Houve uma alta de 280% se compararmos os períodos de 2017 a 2021. No Brasil, a estimativa é que haja mais de dois milhões de pessoas com TEA. No que concerne à lei nº 12.764/12, percebe-se que impactou apenas os direitos à educação, por meio do aumento de matrículas, mas não às estratégias referentes aos suportes (áreas da educação, SAÚDE, assistência social, etc).


Os relatos a seguir (três partes) são de autoria de André Vasques. Ele é Autista e divulga sua experiência de vida com a finalidade de disseminar conhecimento científico sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e sobretudo que não devemos desistir de lutar pela população (munícipes) na condição mencionada. Isso temos feito há anos.


Parte (1)


Muitos Autistas chegam à idade adulta sem um diagnóstico. Às vezes, a pessoa lê alguma informação sobre o autismo que a faz pensar 'Parece que sou eu'. Muitas vezes, depois que o filho é diagnosticado, vem o diagnóstico dos pais. Receber um diagnóstico quando adulto pode significar uma maior compreensão de si mesmo e de como você se relaciona com o mundo. E pode ajudá-lo a aprender como trabalhar melhor com seus pontos fortes e fortalecer as áreas de sua vida que são desafiadoras. O diagnóstico pode ajudá-lo a ter uma perspectiva diferente sobre sua infância. Também pode ajudar as pessoas ao seu redor a compreender e ter mais empatia com suas características únicas. Compreender melhor o conjunto de desafios que você enfrenta pode ajudá-lo a encontrar maneiras novas e criativas de lidar com ou em torno desses desafios. Portanto, se você acha que pode estar no espectro autista, procure um profissional especializado.

Parte (2)

Eu não conseguia falar... Eu não conseguia ler e escrever.... Eu não conseguia frequentar uma escola... Eu não conseguia fazer amigos... Eu era considerado estranho, esquisito, tímido e não me encaixava em nenhum grupo social... Meu primeiro laudo foi ausência de coordenação motora e não poderia conviver em aglomerados humanos... Em uma época que não se falava de Autismo minha sentença de incapaz por todos que estavam a minha volta.... Eu nunca seria nada para eles, e o que me restava era o isolamento... Uma criança e depois um adolescente desacreditado, incompreendido... Me isolei durante anos tinha vergonha de mim, eu de verdade não acreditava mais mim .... Tive crises, depressão, fui chamado de preguiçoso, vagabundo porque não conseguia acompanhar o ditos normais em algumas coisas... Fui colocado de lado pela família, eu era a vergonha que tinha que ser escondida... Quando eu tinha crises na verdade era um pedido socorro, de acolhimento, pois eu estava só em um mundo que só me julgava... Apanhava muito também em casa, quando ia a escola o bullying era terrível e apanhava também... Muitas vezes eu me perguntava (o que eu estou fazendo aqui nesse mundo). Ninguém dava ouvidos para que eu falava ou sentia... Minha paz, minha alegria era meus cães, eles me amavam de verdade e me davam a força que eu precisava... Como defesa me trancava em meu mundo e ninguém me tirava de lá... Meu porto seguro... Medicamentos para conter as crises, e para dormir e mais nada.... E assim eu me isolava cada vez mais .... Até que um dia persistindo em ir a escola por alguma razão encontrei profissionais, professores de verdade que me ajudaram a me desenvolver, a falar, a escrever, a me socializar, a acreditar em mim... E meus laudos como Autista. Podia o mundo dizer não, mas agora eu sabia quem eu era e isso não me abalava mais... Então eu nasci novamente... Casei, me formei, trabalhei, tenho um filho Autista, uma Associação que luta pelos Autistas, tenho habilitação, e tenho fé, esperança, que se eu sobrevivi a tudo isso é porque têm uma razão... Não foi fácil não é fácil a minha luta de superação é diária, nascemos Autistas e vamos envelhecer Autistas...
Parte (3) As Aulas de Educação Física e a dificuldade do primeiro emprego em uma época que não se falava de Autismo.... Meu ritmo no período da manhã era muito difícil e ainda é... Além do Autismo a dislexia também me acompanha na sala de aula e isso me impedia de acompanhar os alunos... Mas naquela época década de 80 quase ninguém entendia isso... Muitos diziam, falta de vontade de aprender, ele não mostra interesse... Era um adolescente sem condições de estar frequentando a escola... Seguindo os professores que eu tinha e pelas escolas que eu passava... E foram muitas... Quantas vezes meus pais foram chamados na Diretoria da escola e eu nem imagina o por quê? Ficar de recuperação era normal para mim... Todos os anos ali estava eu, de recuperação... E mais uma vez sendo reprovado... Nesse tempo ainda não tínhamos os Direitos dos Autistas, não tínhamos nada nem ninguém.... Eram tempos muito difíceis, mais do que hoje... E na parte da manhã aquela dificuldade para acordar, para entender o que se passava ao meu redor... Era como se meu cérebro processasse as informações em câmera lenta... O que não acontecia do período tarde para noite, onde me sentia bem com o meu cérebro normal a todo vapor... Meu ciclo era da tarde para noite, período que eu conseguia aprender, me desenvolver da melhor forma... Isso até hoje.... Era uma luta diária as pessoas falavam comigo mas eu mal conseguia entender direito... Imaginem dentro de uma sala de aula de manhã... Não conseguia aprender, por mais que eu tentasse... Medicamentos para ajudar, não tomava nem um... Então descia todas as consequências disso sobre minha as minhas costas... Eu carregava todo o peso de incompreensão e julgamentos... E no período da tarde a Educação Física... Era prático apontar o problema, mas não ajudar a resolver.... E eu, magro, cheio de espinhas, Autista, sem muita coordenação, com deformação torácica, era obrigado a ir nas aulas de Educação Física.... Mal conseguia andar na rua de shorts, tinha vergonha de mim, insegurança, me dava pânico, pois me achava a menor pessoa do mundo... Além do bullying que sofria nas Aulas de Educação Física... Pois eu não conseguia , jogar futebol, vôlei, basquete, qualquer coisa que usa-se bola, eu não conseguia pular corda, eu que vivia trancado em casa, não brincava nas ruas como todo menino, adolescente dito normal... Até hoje não sei e não consigo praticar esses esportes... Então era torturado nas aulas, levava boladas na cara, nas costas, apanhava e não conseguia reagir ... Aqueles professores que infelizmente eu tive de Educação Física não faziam nada para ajudar, faziam de conta que nada estava acontecendo... Inacreditável, quando penso nisso hoje... Para que eu aprendesse um esporte precisava de alguém que de fato me desse uma real e verdadeira" Educação Física" como diz o nome... Precisava de alguém que me treinasse e descobrisse em qual esporte eu me adaptava melhor.... Um professor de verdade, um professor auxiliar, isso também dentro da sala de aula, teria talvez me ajudado muito... Eu precisava de um profissional capacitado, e se não fosse, que tivesse no mínimo coração e bom senso... Mas não tive isso... No vestiário da escola era chamado de tudo e um pouco mais, além dos alunos mais velhos da escola me darem vários tapas na cabeça... O que disparava o gatilho para minhas crises em meio da violência do ambiente que eu estava... Essas eram as minhas aulas de Educação Física... Por mais que eu tenta-se jogar futebol não conseguia, não conseguia entrar no grupo social dito como normal... Então era isolado... E só era lembrado na escola como o saco de pancadas de alguns alunos... Confesso que por muitas vezes pensei em não viver ... "E depois dizem que existe Autismo Leve"... Em casa apanhava... Era discussões e brigas quase todos os dias, na escola eu apanhava, era praticamente impossível respirar... E o que me salvava?... Me isolar em meu mundo , meu refúgio, meu abrigo... E mais uma vez o gatilho disparava e vinha a crise... Parecia que os Adultos ao meu redor para esconderem suas falhas jogavam toda culpa em mim... Mas hoje entendo que também era difícil para eles... Eram tempos e anos difíceis... Quando eu recebia amor e carinho dos meus avós era como um alívio para minhas dores ... "Os cortes emocionais se tornavam cada vez mais fortes"... "E o amor dos meus avós me davam o remédio que eu precisava"... "O remédio era composto por amor, carinho, apoio"... Mostrando que eu era capaz, e acreditavam e torciam por mim... O quanto isso me ajudava a ter esperança, a suportar tudo que eu passava... Era sempre cobrado a passar de ano, a arrumar o primeiro emprego mas nada nem ninguém ajudava, ou entendia o que se passava comigo... O psiquiatria só me olhava e fazia anotações... Eu não tinha ajuda de ninguém... Mas também sentia em mim uma vontade que não sei explicar ... "A vontade de vencer tudo isso" ... Eu precisava e queria mudar minha vida... E quanto mais a vida me batia e me jogava no chão ... Eu levantava e dizia para mim mesmo ... "Eu não vou desistir."... Não foi fácil, ainda não é fácil, todos os dias temos que lutar e superar barreiras... Mas o primeiro emprego estaria a vista, chegando, emprego esse que meu pai arrumou para mim em um banco... Naquele tempo trabalhar em um banco significava, um plano de carreira para toda vida... Então certa noite meu pai disse... André você vai trabalhar no banco, começa na próxima semana... Fiquei inseguro, com medo, em pânico... Ao mesmo tempo era a chance que eu tinha de mudar minha vida ser valorizado, ser respeitado, ganhar meu primeiro salário!!!... Fiz até planos para comprar cozinhas novas para meus cachorros... Estava feliz, meu pai estava apostando muito em mim, assim como minha mãe... A notícia já tinha se espalhado por toda minha família... Me olhei no espelho e disse vou cortar meu cabelo, colocar uma roupa social e vou conseguir... Já tinha sido dispensado do Exército também é claro, com meu atestado de que não poderia conviver em aglomerados humanos e falta de coordenação motora, me dispensaram rapidinho... Mas estava focado no primeiro emprego... Iria estudar a noite?... Não iria continuar de manhã e trabalhar a noite no serviço de compensação de cheques... Quem é do meu tempo deve lembrar disso... E lá fui eu um Autista no primeiro emprego, agindo normalmente... Primeiro dia tudo bem .... Segundo dia tudo bem também... Até que começou a dar a sobre carga de informações, várias pessoas falando ao mesmo, tempo, e explicando e mandando eu fazer várias coisas rápidas ao mesmo tempo sem poder errar pois estávamos mexendo com dinheiro... Não tive treinamento simplesmente me falaram faça assim e eu fiz... Foi quando eu percebi que não conseguia ficar trancado naquele ambiente, não conseguia escutar as pessoas ao meu redor, não conseguia focar , meu cérebro estava sobrecarregado... E eu não podia desistir... Pois meus pais e familiares estavam apostando em mim... Imaginem eu que nunca dei certo não podia falhar... Mas tive uma crise dentro do banco, não conseguia respirar, a roupa me apertava, o sapato também, não conseguia nem ver, nem escutar ninguém... Então sai do banco passando mal... Em pleno expediente... E fui para casa... Eu havia perdido novamente a chance de mudar minha vida naquele momento... O preço disso foi alto... Meu Pai escutou do Gerente do banco seu amigo, muitas coisas... E depois sobrou para mim, toda carga, toda culpa... Fui chamado novamente de inútil, vagabundo, irresponsável e sem futuro, a decepção da família novamente... E quem iria me entender.... Me escutar... Me ajudar... Todos disseram, mas como ele não conseguiu trabalhar, e agora?... Pelo menos meus cachorros estavam ao meu lado era tudo o que eu tinha... De volta a estaca zero... A ajuda real estaria prestes a acontecer, onde de fato eu iria me auto preparar, acreditar em mim, saber me controlar, e a lidar com as dificuldades do dia a dia... Muitas coisas ainda iriam acontecer.... Mas essa é outra história. ... (Por isso sempre digo que todo Autista precisa de um suporte, um acompanhamento para o encaminhamento ao emprego, para que o Autista possa se adequar ao trabalho. As empresas precisam ter essa noção, e condições de receber os Autistas. Isso exige a capacitação de profissionais, e de profissionais dentro das empresas, assim conseguiremos manter o Autista no seu trabalho e com isso melhorar sua qualidade de vida). Mães, Pais , Avós, nunca desistam de seus Filhos e Netos Autistas...
Eles precisam muito de vocês...

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm [2] https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2021/apresentacao_coletiva.pdf



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